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A sabedoria da água - Reflexão sobre o Capítulo 8 do Dao De Jing

  • Foto do escritor: Raquel Silva
    Raquel Silva
  • 26 de set. de 2024
  • 5 min de leitura

Atualizado: 11 de jan.

Continuamos o estudo da obra Dao De Jing, entrando no oitavo capítulo onde o Velho Mestre nos diz:


A sabedoria mais elevada é como a água.

A água beneficia os dez mil seres

mas não luta com ninguém.

Ela flui em lugares que as pessoas rejeitam.

Deste modo, aproxima-se do Dao.

Na sua morada, a pessoa sábia valoriza a Terra.

No seu espírito valoriza

as qualidades de uma lagoa profunda.

Nas suas relações com os outros

ela valoriza a bondade humana e a benevolência.

No seu discurso, valoriza a verdade.

Ao liderar os outros, ela valoriza a justiça e a paz.

Ao servir os outros, valoriza a eficácia.

Nas suas ações, ela valoriza o momento certo.

Porque ela não vai contra a natureza

ela está livre de culpa.


Neste capítulo, o Velho Mestre usa a água como uma metáfora para a Virtude mais elevada, por ser algo que, apesar de humilde, é indispensável. A água é maleável, adaptável e fluida, mas também essencial à vida.

A sua natureza é benevolente pois sustenta todas as formas de vida sem jamais competir ou exigir nada em troca. Esta qualidade ensina a pessoa sábia a agir de forma a beneficiar o mundo ao seu redor, sem procurar conflitos ou gratificação pessoal. Por isso, a verdadeira sabedoria não é egoísta, ela serve a todos os seres de maneira imparcial.

A água também é humilde, pois flui em lugares que as pessoas rejeitam. A água desce para os vales e lugares baixos, onde as pessoas normalmente não querem estar. Por isso, também a pessoa sábia cultiva a humildade, evitando os lugares de destaque ou prestígio. A pessoa sábia ajusta-se harmoniosamente ao que acontece, sem se importar de ficar por baixo e servir. Por isso, é na humildade e no desinteresse por estatuto que nos aproximamos do Dao e da harmonia com o fluxo natural da vida.


O Velho Mestre ainda nos diz que a pessoa sábia valoriza a Terra, apontando para um profundo respeito pela Natureza, pela simplicidade e estabilidade que ela proporciona. Não ir contra a Natureza significa não ir contra o fluxo natural da vida. Mas também pode significar não ir contra o fluxo natural do próprio Ser. Quando a pessoa se força a assumir uma forma que lhe é imposta, acaba por se distorcer e gerar sofrimento. Só quando nos permitirmos fluir como a água, seremos capazes de lidar com qualquer situação a partir de um lugar autêntico. Como comenta António Campos, a pessoa sábia:

(...) faz como a água de um riacho que, ao encontrar pela frente um obstáculo, se ajusta a ele, como se se submetesse, mas segue o seu caminho como se ele nem existisse.

No espírito, o Velho Mestre faz uma analogia com a lagoa profunda, representando a tranquilidade e a profundidade interior, uma mente calma e contemplativa, que reflete e absorve sem agitação. Quando contemplamos um corpo de água, percebemos que tem sombras e reflexos da luz, mas a água nunca perde a sua verdadeira natureza, a sua Essência: podemos congelá-la ou fervê-la, ela irá adquirir diferentes formas, mas a sua natureza molecular não irá mudar - H2O. Quando conseguimos ser completamente livres e capazes de fluir em qualquer circunstância, podemos viver uma vida longa e feliz. Quando, constantemente, lutamos contra a nossa situação de vida e tentamos forçá-la a assumir a forma que preferimos, acabamos por sofrer. Por isso, a pessoa sábia age com humildade e benevolência, sem competir ou interferir na vida alheia.


A água simboliza a sabedoria de saber se adaptar às circunstâncias sem resistir, de beneficiar tudo ao seu redor sem discriminar e sem comprometer a sua essência, desta forma, a água é um espelho da pessoa que está em harmonia com o Dao: simples, fluida, sem imposições.


Trazendo a reflexão para a dimensão relacional ou social, o Velho Mestre diz que a pessoa sábia valoriza a benevolência nas relações humanas, agindo com bondade e compaixão. Ora, no capítulo 5, Laozi diz-nos que "a pessoa sábia não é benevolente"... isto parece uma contradição. Por isso, recordamos que a mensagem desse capítulo é que a pessoa sábia não tem como objetivo ser benevolente. A sabedoria não está em agir com benevolência seguindo padrões humanos, a sabedoria está no reconhecimento da imparcialidade e indiferença do fluxo natural e em tratar todos os seres de forma igual, sem apego ou favoritismo. Assim, ao cultivarmos a sintonia e alinhamento com o Dao, a nossa atitude será de benevolência, não porque procuramos agradar aos Céus ou seguir um padrão moral, mas porque essa é a resposta mais natural e espontânea.

Regressando ao Cap. 8, o Velho Mestre aponta que, no discurso, a pessoa sábia valoriza a verdade, portanto a sua comunicação será honesta e transparente, sem ilusões ou enganos - a pessoa fala "de coração para coração".


Ao liderar, a pessoa sábia promove a paz e a justiça, por isso governa com equidade e harmonia, sem opressão. Governa? Então não era suposto a pessoa sábia servir?!

Para compreendermos a aplicação do pensamento taoísta à liderança, vamos recorrer a Tian Pian 田騈*, um dos mestres da Academia de Jixia (Jixia zhi xue 稷下之學), que terá apresentado ao então governante do reino de Qi, o método do Caminho como forma de governação:

As minhas palavras permitem-lhe alcançar o governo [ordenado] sem se envolver no seu governo. É como se pudesse obter madeira a partir do nada. (...) Todos os processos de transformação que respondem às exigências [ambientais] têm a sua manifestação. Se alguém está de acordo com a essência natural [das coisas] e permite que estas coisas trabalhem espontaneamente para si, nada será alcançado de forma inadequada.

Governa, ou lidera, sem se envolver - Wuwei (não ação, sem agir). Ao não ir contra a Natureza maior ou contra a sua própria natureza, a pessoa sábia está “livre de culpa”. Isto significa que ela não gera sofrimento, ela não distorce a sua verdadeira natureza para se “encaixar” no mundo, nem tenta vergar o mundo à sua vontade ou capricho.


Por fim, o Velho Mestre diz que, nas ações e serviço, a pessoa sábia prioriza a eficácia e o momento adequado para agir. Ela sabe que cada coisa tem o seu tempo, e ao agir de acordo com o ritmo natural dos eventos, a sua eficiência é maximizada. A pessoa sábia espera o momento certo para intervir, pois sabe que forçar ou precipitar algo pode ser prejudicial.


E é assim, ao agir em harmonia com o Dao, sem forçar ou lutar contra a Natureza, que a pessoa sábia se mantém livre de culpa ou arrependimento. Ela flui com o curso natural das coisas, aceitando o que vem sem resistência, e por isso vive uma vida sem obstruções ou conflitos internos. O Caminho da pessoa sábia é como o da água: humilde, adaptável, benéfico e em harmonia com o fluxo da Natureza. Ao seguir estes princípios — e respeitar a verdade, agir com justiça e valorizar a simplicidade, bondade e eficácia — a pessoa sábia vive de acordo com o Dao, fluindo naturalmente pela vida sem culpa ou resistência.


(Pode assistir ao vídeo com o resumo desta publicação aqui!)


Referências bibliográficas

Chuang Tse (1992). Capítulos Interiores. Editorial Estampa. [Tradução António Manuel Guedes de Campos, sobre a versão em língua inglesa de Gia-Fu Feng e Jane English]

Lao Tse (2010). Tao Te King - O livro do Caminho e do Bom Caminhar. Relógio D'Água Editores [Tradução e Comentários de António Miguel de Campos].

Towler, S. (2016). Practicing the Tao Te Ching - 81 Steps in the Way. Sounds True.

*Tradução de Masayuki Sato. Lecture Seven - The Jixia Academy and Transformation of Intellectual Miliu (Introduction to Classical Chinese Philosophy - online course). National Taiwan University.

OpenAI. (2021). ChatGPT [Software]. https://openai.com/

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