Aprender com a Bhagavad Gita
- Raquel Silva
- 11 de fev.
- 7 min de leitura
Atualizado: 25 de fev.
É com enorme entusiasmo que vos convido a embarcar numa viagem de descoberta e reflexão através de uma série de publicações dedicadas à Bhagavad Gita – uma obra essencial da filosofia védica da Índia.
Inspirada pela máxima de Mário Quintana, que tão bem disse:
Livros não mudam o mundo, quem muda o mundo são as pessoas. Os livros só mudam as pessoas,
vamos explorar, capítulo a capítulo, os ensinamentos desta epopeia milenar e revelar como os seus insights se aplicam aos desafios e às necessidades da vida moderna.
Um Tesouro de Sabedoria Atemporal
A Bhagavad Gita é, em verdade, um condensado dos inúmeros tomos da literatura védica escritos ao longo dos últimos 5000 anos, reunidos num pequeno mas poderoso capítulo do grandioso Mahabharata. Apesar de ter a sua origem na Índia e estar intimamente ligado à tradição hindu, os ensinamentos da Gita transcendem barreiras culturais e religiosas, revelando leis universais da natureza – códigos de conduta e formas de viver em sintonia com a harmonia do universo.
Esta visão encontra eco na ideia de que, em muitas culturas indígenas antigas, não existia uma distinção entre o sagrado e o quotidiano - a própria vida é sagrada. Assim, encontramos na Gita e na cultura védica uma mensagem universal: independentemente do caminho que cada indivíduo siga – seja pela crença num Deus eterno, na Natureza ou na Ética – o que importa é a ligação com o que é verdadeiramente essencial.
Muitos Caminhos, Um Só Objetivo
Há um ditado na Índia que diz: “Há muitos caminhos, mas um objetivo”. Este pensamento reflete a forma como a cultura indiana celebra a diversidade espiritual, onde até mesmo as figuras de Krishna, Buda e Jesus convivem lado a lado, simbolizando que, na essência, todas as religiões partilham o reconhecimento de um Deus eterno e de um amor que tudo transcende, apesar de cada religião possuir os seus rituais e crenças próprios.
Na Bhagavad Gita, a mensagem é clara: como é que uma pessoa sincera pode equilibrar as exigências da vida mundana com a busca do divino? Como pode, no meio de obstáculos e tensões, cultivar uma relação pessoal e amorosa com Deus? Estas são questões tão pertinentes hoje como eram há milhares de anos, e é precisamente a relevância desses ensinamentos no contexto da modernidade que iremos explorar nesta série.
A Aplicabilidade dos Ensinamentos na Vida Moderna
É comum a pergunta: “Uma história com 5000 anos pode realmente ser aplicada à vida moderna?” A resposta é um retumbante sim. Os ensinamentos da Gita não se limitam a uma tradição ou a um conjunto de rituais; são orientações práticas para quem procura viver com mais harmonia, paz e contentamento. Independentemente das convicções espirituais de cada indivíduo, as lições da Bhagavad Gita convidam-nos a olhar para dentro e a descobrir que a verdadeira felicidade reside num reservatório de paz e bem-aventurança que já possuímos.
Além disso, a literatura védica inclui o Ayurveda, que analisa os princípios universais para a manutenção da saúde e do equilíbrio. Num mundo onde a correria e o stress se tornaram comuns, os benefícios de um estilo de vida ayurvédico têm ganhado cada vez mais adeptos – independentemente da religião ou crença pessoal. Assim como recebemos orientação e ajuda por profissionais da medicina, psicologia, ensino e tantos outros, sem ter em conta as suas crenças espirituais ou religiosas, aprender com a Gita pode ser uma experiência natural e integrada na nossa forma de viver.
O Verdadeiro Significado do Yoga
Para interpretar os ensinamentos da Bhagavad Gita, é essencial compreender o verdadeiro significado do Yoga. Muito para além das posturas (asanas) que tantas vezes associamos à prática, o Yoga, em seu sentido mais profundo, significa unir, harmonizar e transformar num só. Enquanto as posturas ajudam a fortalecer o corpo e a equilibrar as energias, o Yoga na sua dimensão mais elevada revela-se como o caminho para a autorrealização – o despertar para a união entre a alma pessoal e a alma universal.
De acordo com a filosofia védica, o objetivo da vida é despertar a consciência interior e reconhecer que a nossa verdadeira natureza é eterna – seja como a Alma, Deus, a essência da Natureza ou a Ética que seguimos. Acreditar na nossa limitação é o que gera o sofrimento. Muitas vezes, a nossa busca por objetos ou realizações externas é, na verdade, uma tentativa de preencher uma sensação de separação que nos afasta da nossa verdadeira essência. A Gita ensina que, ao unir o nosso interior com o divino, transformamos a nossa existência de um ciclo de desejo e frustração para um caminho de paz, harmonia e alegria genuína.
Uma Mensagem de Amor e União
No cerne dos ensinamentos da Bhagavad Gita está a simples, mas poderosa, mensagem de que o objetivo da vida é viver em paz e harmonia, cultivando, a cada dia, uma relação mais íntima com o divino. O Senhor Krishna, o professor da Gita, apresenta-se como uma forma representativa de Deus – assim como Jesus fez na sua época –, enfatizando que o verdadeiro caminho para a felicidade não reside nos prazeres efémeros da vida material, mas na união amorosa com Deus. Krishna ensina que, para alcançar a bem-aventurança duradoura, devemos aprender a abraçar o divino em cada momento do nosso dia, reconhecendo que Deus se manifesta de formas acessíveis, ajudando-nos a compreender e a viver essa união. Esta mensagem de amor e de união é universal e destina-se a todos e todas – não é preciso ser hindu para absorver a sabedoria do Gita!
Enquadrando a Bhagavad-gita
A Bhagavad-gita é um episódio central do Mahabharata, o maior poema épico já escrito na história da Humanidade, cuja autoria é atribuída ao sábio Vyasa. Este imenso tesouro literário, composto por cerca de 110 mil estrofes distribuídas por cem capítulos, é uma autêntica biblioteca reunindo conhecimentos de mitologia, religião, filosofia, ética e costumes de eras inteiras. Em comparação com a Ilíada, a Odisseia ou mesmo a Bíblia, o Mahabharata revela-se vasto e multifacetado, convidando-nos a descobrir as suas múltiplas camadas de interpretação. Tradicionalmente, este épico é lido em três níveis:
Externamente: a narrativa de uma família real mergulhada numa terrível guerra fratricida, onde se exaltam valores como o heroísmo, a coragem e a santidade.
Eticamente: a representação da luta diária entre o bem e o mal, entre a justiça e a injustiça.
Espiritualmente: a batalha interna entre o Eu Superior e o eu inferior, entre o chamado espiritual do ser humano e os impulsos do corpo, da mente e dos sentidos.
A história do Mahabharata tem como fio condutor a saga dos descendentes do rei Bharata, cuja sabedoria e coragem foram decisivas para quebrar o dogma do sistema de castas. O respeitado rei afirmou que não é a casta em que se nasce que torna uma pessoa grande, mas sim os seus próprios esforços e ações. Foi com esta visão revolucionária que a antiga Índia passou a valorizar uma espécie de democracia, onde todas as pessoas podiam aspirar ao sucesso com base nas suas virtudes pessoais, e não por privilégio de nascimento.
Desta linhagem emergiram dois irmãos da dinastia Kuru: Dhritarashtra e Pandu. Devido à cegueira do primeiro, o trono foi atribuído a Pandu, dando origem à família dos Pandavas – os seus cinco filhos, Yudhisthira, Bhima, Arjuna, Nakula e Sahadeva – que cresceram na mesma casa real onde também eram educados os filhos de Dhritarashtra, os Kauravas, entre os quais se destacava o invejoso Duryodhana. Ambos os grupos foram treinados nas artes marciais pelo experiente Drona e orientados pelo venerável Bhishma, o que, contudo, não impediu o surgimento de uma rivalidade amarga.
A inveja e a ambição de Duryodhana foram alimentadas pelo facto de Dhritarashtra, facilmente influenciado, preferir ver os seus próprios filhos a herdarem o reino, mesmo quando estes não demonstravam as virtudes necessárias para governar. Assim, quando Pandu morreu precocemente, os Pandavas, apesar de serem conhecidos pela sua coragem, integridade e sabedoria, viram-se lentamente sufocados por intrigas e traições. A situação agravou-se quando Duryodhana, movido pela ganância e pelo ciúme, tramou artimanhas para usurpar o reino dos Pandavas, valendo-se de manobras desonestas que culminaram num jogo de dados fraudulento. Este episódio desonroso não só despojou os Pandavas do seu direito legítimo ao trono, como os condenou a treze anos de exílio.
Mesmo após o retorno do exílio, as tentativas de reconciliação foram infrutíferas. Ao exigir a devolução do reino, os Pandavas depararam-se com a intransigência de Duryodhana, que recusava ceder até mesmo o mínimo, preferindo manter a sua arrogância e o seu poder a todo custo. Numa altura em que a tolerância dos Pandavas chegava ao fim, o conflito parecia inevitável.
Neste cenário de tensão e injustiça, surge o papel decisivo do Senhor Krishna – não só parente e amigo, mas a própria encarnação divina que desceu à Terra para restaurar o equilíbrio e defender a justiça. Krishna, que já havia protegido os Pandavas em diversas ocasiões, viu a necessidade de agir como mediador. Na véspera da batalha, sentou-se com Arjuna e Duryodhana e fez a seguinte oferta: sendo Deus, seria injusto lutar em qualquer um dos lados, pois isso garantiria que o seu lado venceria; assim, um primo podia escolher os exércitos, as armas e os veículos de Krishna, enquanto o outro primo podia escolher o próprio Krishna para ser o seu condutor e guia de carruagem. Enquanto Duryodhana, com a sua astúcia política, optou por aproveitar a força militar de Krishna que ele próprio poderia comandar, os Pandavas, e em particular o nobre arqueiro Arjuna, escolheram contar com a orientação e presença divina de Krishna, que se prontificou a conduzir a sua carruagem.

Foi assim que, com os dois exércitos alinhados e a tensão a aumentar, Dhritarashtra, ansioso, perguntou ao seu secretário Sanjaya: “Que fizeram eles?...”. E é esta pergunta que marca o prelúdio do diálogo que dá origem à Bhagavad-gita, um ensinamento eterno sobre a vida, o dharma e a união com o divino.
Esta é a história que antecedeu a revelação da Bhagavad-gita – uma narrativa de coragem, traição, justiça e, sobretudo, de uma busca interior pela verdade. Uma história que, embora situada há milhares de anos, continua a inspirar e a iluminar os caminhos de quem procura compreender a verdadeira essência da existência.
Conclusão
Convido-vos, pois, a acompanhar esta série de publicações onde, a cada novo post, iremos mergulhar num capítulo, ou estância, da Bhagavad Gita, desvendando os seus ensinamentos e descobrindo como estes podem inspirar-nos a viver com maior paz, harmonia e integridade. Seja qual for o vosso caminho espiritual, o que importa é recordar que somos, em essência, seres amorosos e infinitos, capazes de transformar a nossa vida e a do mundo à nossa volta.
Preparem-se para uma jornada que vos convida a olhar para dentro, a cultivar a união entre o corpo, a mente e o espírito, e a descobrir que a verdadeira felicidade é um estado interior, duradouro e repleto de amor.
Bem-vindos e bem-vindas a esta aventura de autoconhecimento e transformação!
Bibliografia
Feuerstein, G. e Feuerstein, B. (2015). Bhagavad-Gītā: uma nova tradução. Editora Pensamento-Cultrix [tradução do inglês por Marcelo Brandão Cipolla].
Swami Sadashiva Tirtha (2007). Bhagavad Gita for Modern Times: Secrets to Attaining Inner Peace & Harmony. Sat Yuga Press.
Vyasa (2022). Bhagavadgita: O Canto do Bem-Aventurado. Edições Agnimile/Nova Acrópole [tradução do sânscrito e introdução por Ricardo Louro Martins].
Texto revisto com OpenAI: ChatGPT [Software]. https://openai.com
Imagem criada com inteligência artificial generativa [freepik.com].
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