A Voz do Silêncio e a Escolha Espiritual: Servir ou Libertar-se?
- Raquel Silva
- 24 de abr.
- 4 min de leitura
Atualizado: 23 de mai.
Reflexões sobre o segundo fragmento d'A Voz do Silêncio, de H. P. Blavatsky, e os dois caminhos que se abrem perante quem desperta: a libertação individual ou a renúncia compassiva.

No segundo fragmento de A Voz do Silêncio, surge uma escolha que só se apresenta a quem já percorreu longamente o caminho interior: continuar em direção à libertação individual — nirvana — ou abdicar dessa conquista para permanecer no mundo e auxiliar quem ainda sofre. Essa escolha define o Bodhisattva, aquela pessoa que, tocada por uma compaixão tão vasta quanto a própria existência, decide renunciar ao descanso final para servir a humanidade.
Este dilema profundo revela-se também nas vidas de quem percorre, mesmo que em passos humildes, uma jornada de autoconhecimento:
Qual o sentido da espiritualidade que se fecha sobre si mesma?
Será possível crescer sem se afastar do mundo?
Como cultivar liberdade interior sem se tornar indiferente?
A obra de H.P. Blavatsky apresenta este tema com beleza poética e intensidade simbólica, mas também oferece preciosas pistas práticas. A seguir, aprofundamos três chaves de reflexão para quem deseja viver este ensinamento no dia a dia.
Agir ou retirar-se?
Uma das armadilhas mais comuns ao início do caminho espiritual é a tentação de se isolar do mundo para evitar "contaminar-se" com a dor, a confusão ou a superficialidade que se observa à volta. Porém, A Voz do Silêncio adverte:
Não creias que sentando-te em florestas escuras, em orgulhosa reclusão, longe das pessoas (…) isto te levará à libertação final.
Esta mensagem ecoa com as palavras de Krishna na Bhagavad Gita, quando ensina que agir é inevitável. Mesmo a decisão de não agir já é uma ação e, portanto, gera consequências. Krishna afirma:
É melhor cumprir o próprio dever de forma imperfeita do que o dever de outrem de forma perfeita.
Blavatsky reforça que a libertação não vem da fuga da ação, mas sim da transformação da intenção que a motiva. Não se trata de fazer mais ou menos, mas de agir a partir do centro silencioso, onde o ego cede lugar à sabedoria.
Desapego não é indiferença
Outro conceito frequentemente mal compreendido é o do desapego. No caminho espiritual, não se trata de suprimir sentimentos ou cortar laços afetivos. Pelo contrário, trata-se de purificá-los da necessidade de controlo, posse e projeção.
Se te disserem que para te tornares Arhan* tens de deixar de amar todas as coisas – diz-lhes que mentem.
Desapegar não é fechar o coração, é abrir-se sem medo de sofrer, é sentir profundamente sem se deixar manipular pelas emoções reativas. Enquanto o desapego é liberdade interior, a indiferença é uma armadura: um afastamento emocional que, muitas vezes, revela medo ou exaustão perante a dor alheia ou própria.
Desapegar é deixar de precisar que o mundo nos confirme, sem perder a ternura diante dele.
Evitar criar novo karma?
Em A Voz do Silêncio, a advertência contra a inação como fuga é clara:
A inação num ato de misericórdia passa a ser a ação num pecado mortal.
O karma, como ensina Krishna, é simplesmente ação – não é castigo, nem recompensa arbitrária, mas a consequência natural do que semeamos, consciente ou inconscientemente. É o campo onde crescemos.
O que se costuma chamar de “mau karma” pode ser compreendido como um realinhamento pedagógico da vida: os efeitos que nos empurram, às vezes dolorosamente, de volta ao eixo do dharma — o propósito profundo da existência.
Ao invés de nos paralisar, o karma pode ser o nosso grande mestre, a mostrar que cada gesto, pensamento ou intenção tem peso no equilíbrio do mundo — e no nosso equilíbrio interior.
Em vez de evitar o mundo, transforme-se no seu reflexo mais luminoso.
A verdadeira espiritualidade, diz este segundo fragmento, é feita de escolha. Não da escolha que se faz uma vez, mas de infinitas escolhas conscientes em cada gesto quotidiano. E, um dia, talvez, a vida coloque diante de nós a pergunta maior:
Quererás salvar-te ouvindo todo o mundo chorar?
Nem toda a pessoa está pronta para a renúncia do Bodhisattva. Mas cada passo na direção do amor, da clareza e da ação consciente abre espaço para que esse ideal floresça dentro de nós.
Importa, no entanto, recordar que o Bodhisattva não vem fazer o nosso trabalho por nós. O seu papel é guiar, inspirar e iluminar o caminho — como fazem as famílias conscientes e os verdadeiros educadores. Mas ninguém pode crescer no nosso lugar. A libertação é um processo interior e intransmissível. Esperar que um ser iluminado nos venha “resgatar” é perpetuar a ilusão de que a transformação vem de fora.
O ensinamento mais compassivo que um Bodhisattva pode oferecer é este: Tu podes caminhar. E tens de caminhar por ti.
(Pode assistir a uma prática inspirada n'A Voz do Silêncio aqui!)
*Segundo o Glossário Teosófico, na tradição budista, um Arhat (ou Arhan, em sânscrito) é alguém que atingiu o mais alto grau de realização espiritual. É descrito como aquela pessoa que venceu os inimigos interiores – desejos, paixões e ilusões – alcançando assim a libertação total (nirvana).
Arhat significa “digno” ou “vencedor dos inimigos interiores”.
É alguém que atingiu a libertação espiritual total (nirvana).
Venceu o desejo, o ego e a ilusão – não volta a renascer.
É o ideal supremo no budismo Theravada.
Mas...
No budismo Mahayana, o ideal vai mais além:
O Bodhisattva, que renuncia ao nirvana para continuar no mundo e ajudar outros seres a despertar.
O Arhat liberta-se.
O Bodhisattva escolhe ficar para servir, representa a renúncia altruísta para o bem da humanidade.
Bibliografia
Blavatsky, H.P. (1992). The voice of the silence translated and annotated by H. P. Blavatsky. Quest Books – Theosophical Publishing House.
Blavatsky, H.P. (2012). A Voz do Silêncio. Marcador Editora [Tradução de Fernando Pessoa].
Blavatsky, H.P. (2022). Glossário Teosófico - A versão original e póstuma de 1892, editada por George Mead. CLUC - Centro Lusitano de Unificação Cultural. [Tradução de Maria Paula Lourinho].
G. de Purucker (ed.) (1999). Encyclopedic Theosophical Glossary. Theosophical University Press.
Nota editorial
A revisão do texto contou com o apoio da ferramenta ChatGPT (OpenAI), utilizada como assistente na clarificação de ideias, revisão linguística e organização de conteúdos. As imagens foram geradas por inteligência artificial (Freepik.com) e editadas para fins ilustrativos.
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